O deboche atrevido de Arlete Hilú, líder confessa da principal quadrilha de tráfico de bebês nos anos 80
- Gabriel Toueg
- Dec 19, 2016
- 5 min read
Updated: May 7, 2024

A sorridente senhora da foto é Arlete Honorina Vitor Hilu. Ela foi localizada e entrevistada exclusivamente pela TV Record para o programa Repórter Investigação. A entrevista não é nova, foi ao ar em março deste ano. Mas eu só a vi agora, alertado por uma pessoa que conheci quando me envolvi na investigação sobre tráfico e adoção ilegal de bebês e crianças brasileiras por pais estrangeiros na década de 1980.
A minha pesquisa deveria virar um livro, mas eu suspendi temporariamente a ideia por falta de recursos e de energia, não sem antes conversar com muita gente e de publicar algumas histórias. Na entrevista para a Record, Arlete, hoje aposentada e com 72 anos, confessa:
“Pode me chamar de traficante de crianças, sim. Fui traficante de crianças e essas crianças estão maravilhosamente bem - ma-ra-vi-lho-sa-men-te bem” — Arlete Hilu
Essa declaração mostra o deboche de quem tem a certeza de ter feito um favor a crianças que, hoje com idade ao redor de 30 anos, ainda não sabem quem são seus pais biológicos.
Arlete Hilu liderou uma quadrilha de tráfico de menores que tirava bebês e crianças de suas famílias biológicas, muitas vezes sem consentimento (ou conhecimento) delas, algumas vezes sob coação, e os vendia (por 1,2 mil a 1,3 mil dólares, como contou na entrevista) para adoção para pais estrangeiros que vinham ao Brasil atraídos pela facilidade criada por uma lei frouxa anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e de normas rígidas de adoção combinados com a corrupção de agentes públicos que deveriam assegurar os direitos dos menores.
Assista à íntegra da entrevista:
Casos reais
Uma dessas crianças foi adotada nos anos 1980 por pais israelenses. Seu nome é Chen Levy Gavillon. Eu a conheci em Israel e acompanhei, durante muitos anos, a busca que ela empreendeu pela família biológica. Nunca teve sucesso. Em um determinado momento, cansada dos becos sem saída da burocracia e da dificuldade de localizar informações que pudessem dar alguma pista, ela desistiu. Em 2012 conversamos e ela me contou essa história, que foi publicada no Estadão:
Embora tenha investigado e procurado de forma quase incansável ao longo de vários anos, Chen ainda não sabe quem são os pais biológicos, pessoas que ela se recusa a chamar de ‘pais’, apesar do desejo de encontrá-los. A pouca informação que ela tem se resume ao nome do Hospital Nossa Senhora das Graças, de Bom Retiro (SC), onde ela teria nascido.
A história de Chen não é uma exceção. Com a dificuldade de adotar crianças em Israel, famílias daquele país recorriam a adoções em outras nações. Segundo a documentarista israelense Nili Tal, que fez dois filmes sobre o assunto, durante a década de 1980 mais de 3 mil crianças brasileiras foram adotadas, muitas das quais de forma ilegal, por pais israelenses. E o mesmo aconteceu com pais de vários outros países.
Aisha, de 'Salve Jorge'
O drama dessas crianças ficou amplamente conhecido no Brasil com a novela Salve Jorge, exibida pela TV Globo. O folhetim, que esteve no ar em horário nobre entre 2012 e 2013, não apenas abordou o assunto como o fez mesclando a história fictícia de uma personagem com depoimentos reais de crianças que hoje vivem em outros países e seguem buscando suas famílias biológicas.
Entre os casos reais que a novela trouxe ao público está a história de Ron Yehezkel, nascido em Pelotas (RS) em 1986, mas que nunca voltou ao Brasil e não fala português. Ele diz sentir-se "um pouco brasileiro", gosta de ouvir música e assistir a jogos da seleção. Uma garota que mora em Israel contou que foi entregue aos pais adotivos por intermediários na Alemanha. Inbal Adiv Gabriel nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 1986 e quer entender a razão de ter sido entregue pela mãe biológica.
Outra história é a de Fabiana Soares, nascida em Fortaleza (CE) em 1985 e levada para Israel com apenas 15 dias de vida. Lior Vilk, nascido e traficado em 1985, procura a família biológica há anos e conta que seus documentos foram todos falsificados.
Essas são apenas a ponta de um iceberg muito mais profundo de uma história que teve seu ápice há 30 e poucos anos. De fato, se você assistiu ao vídeo, viu que Arlete confessou que recentemente uma criança “caiu em seu colo” e foi adotada por pais israelenses. Os crimes cometidos nos anos 1980 continuam acontecendo, segundo o depoimento dessa mulher.
Isaura Mandryk
A mulher que me alertou sobre o vídeo da entrevista da Record se chama Isaura Mandryk. Ela foi minha “guia” na investigação que fiz ao longo de vários anos sobre o assunto. De forma voluntária, ela ajuda jovens adotados na busca pela documentação e pelas famílias biológicas. Quando compartilhou a entrevista, esta semana, Isaura comentou no Facebook:
É mentira que as mães biológicas ‘venderam’ (as crianças), que receberam dinheiro… Algumas receberam cestas básicas ou pequenos valores. E o dinheiro ficava com os ‘intermediários’. As mães biológicas (eram) coagidas e ameaçadas: se denunciassem, iriam presas. Algumas ‘patroas’ levavam os bebês sem o consentimento das mães – e quando elas ficavam sabendo que foram para o Juizado, as crianças já haviam sido adotadas, inclusive com o escrivão ameaçando. (…) Outros juízes, outros agentes públicos, inclusive oficiais de Registro Civil e tabeliães (estiveram envolvidos). É verdade também que o esquema mafioso era muito, muito grande – no Brasil todo, em outros países também. Essas crianças não têm ‘uma vida muito, muito boa’ (em referência à declaração de Arlete): milhares tentam encontrar suas famílias biológicas, direito fundamental universal. A confusão é grande demais. Arlete Hilu foi apenas o boi de piranha.
Em uma entrevista ao Diário Catarinense, de 2012, época da novela, Arlete Hilu disse não saber do tráfico de crianças, que agora confessa, conta que a experiência na prisão (ela esteve presa duas vezes) “foi uma maravilha”, diz que não se arrepende de nada, afirma que as crianças têm “vida de reis e príncipes” e que, no Brasil, seriam “marginais”. E relata algo que Isaura sempre alertou: a participação de diversas esferas do poder público para permitir a adoção e a saída dessas crianças do Brasil:
Todos os processos que eu fiz foram dentro do Juizado de Menores. A PF dava passaporte. Se fosse documento falso, a PF não daria passaporte. Tudo legalizado. (…) Existia uma máfia dentro do hospital, que já tinha as pessoas certas.
A quem se interessa pela história, dois recados: 1. estou sempre interessado em retomar essa pesquisa de forma aprofundada e de publicar aquele livro; tenho um extenso material à disposição de quem quiser mergulhar comigo nisso. 2. se você está curioso e quer entender a extensão do tema, vamos conversar.




Comments